Vitimização feminina no horror: a violência como arte
- Andressa Gomes
- 11 de set.
- 5 min de leitura
Com a estreia de 'Dias Perfeitos' no streaming, a internet levantou a pauta do excesso de violência contra a mulher nas obras de Raphael Montes. Mas será que ele é o único que move essa engrenagem?
O horror é um dos mais antigos e populares gêneros do cinema e da literatura, mas também um dos mais controversos. A forma como as mulheres são representadas na arte tem gerado debates acalorados na internet nas últimas semanas. Mas será que a vitimização feminina no horror é algo tão recente assim?
Para entender isso, é preciso mergulhar nas entranhas da retratação do feminino no gênero de horror, que recentemente ganhou força com as críticas à adaptação de ‘Dias Perfeitos’ e a outras obras do autor brasileiro Raphael Montes.
Mas antes: qual a polêmica com Raphael Montes?
Raphael Montes é um escritor e roteirista brasileiro, muito conhecido por livros de suspense e crime e pela violência extrema que coloca nos enredos. Recentemente, ‘Dias Perfeitos’, um dos livros mais famosos do autor, foi adaptado para uma série de oito episódios produzida pela Globoplay.
A trama acompanha Téo, um estudante de medicina introspectivo que desperta uma obsessão por Clarice, uma jovem destemida e aspirante a roteirista. Após ser rejeitado por ela, Téo sequestra Clarice e a força a tentar ter um “relacionamento perfeito” com ele.
Tanto o livro quanto a adaptação são repletos de violência física e psicológica, sobretudo contra a personagem feminina. O fato levantou discussões sobre como o autor frequentemente vitimiza as mulheres em suas obras, as colocando em situações de degradação e tortura.
Os internautas esquecem, entretanto, que a raiz do problema é muito mais antiga do que os livros de Raphael Montes.

A vitimização feminina no horror e o fetiche da violência contra a mulher
O objetivo não é retirar a responsabilidade de Raphael Montes em retratar mulheres sendo violentadas, principalmente após a resposta do autor ironizando um tema tão sério.
Porém, é importante pontuar que o problema vem de uma indústria do horror que já enraizou a vitimização feminina como um subgênero da área, e que há décadas objetifica as mulheres com a tortura, violência psicológica e física, tornando a questão um clichê que Montes apenas reproduz sem dar luz à questão.
Não é à toa que a degradação do corpo feminino atinge seu auge no que pode ser considerada a segunda era de ouro do cinema de terror, com a ascensão do subgênero slasher e o início de um torture porn cada vez mais gráfico.
E, por mais que a violência gráfica tenha se expandido nas décadas de 1970 e 1980, o início disso é ainda mais antigo, e está atrelado à mudança de percepção do medo ocorrida alguns anos antes.
A misoginia como parte do DNA do horror
As mulheres estão nos holofotes do horror há décadas, seja como as clássicas final girls, ou mesmo como bruxas, feiticeiras ou femme fatales. Apesar dessas representações do feminino serem tão problemáticas quanto o assunto central desse artigo, não cabe, aqui, essa discussão complexa (em outro texto, talvez?).
A violência feminina existe no horror desde, pelo menos, a década de 1960. No cinema, principalmente, isso se torna mais notável quando acontece a virada de chave na forma como o terror era retratado em tela.
Antes, o foco estava em adaptar figuras monstruosas da literatura gótica, como Drácula e Frankenstein. Com a ascensão de filmes mais psicológicos, sobretudo liderados por Alfred Hitchcock, o cinema passa a entender que o verdadeiro horror pode estar dentro da mente humana, e morar no quarto ao lado.
E é possível dizer, inclusive, que Hitchcock foi uma figura central em propagar a violência feminina como o grande choque narrativo dos filmes. ‘Psicose’ (1960), por exemplo, tem a grande cena do assassinato no chuveiro.

Já ‘Os Pássaros’ (1963) foi um verdadeiro trauma para a protagonista, interpretada por Tippi Hedren. O diretor instruiu a equipe técnica a agredir física e verbalmente a atriz durante as gravações, de forma que as emoções de Hedren se tornassem mais realistas na câmera.
Sempre acredito em seguir o conselho do dramaturgo Sardou. Ele disse: 'Torturem as mulheres!'. O problema hoje é que não torturamos mulheres o suficiente. Alfred Hitchcock
E, de uma forma ou de outra, Hitchcock estava certo. Não pelo fato de que as mulheres já não são violentadas o suficiente, mas pelo lucro que a fetichização da violência contra a mulher fornece às grandes indústrias.
Cinema, espelho da realidade
A arte imita a vida. Por isso, o cinema tende a retratar os males e as percepções da sociedade, e com o horror isso não é diferente. O gênero perpassou as fases do último século no mundo, representando os traumas do pós-guerra, as angústias de uma potencial bomba atômica e a polarização de países que conheceram, pela primeira vez, formas de liberdade individual.
E envolto a tudo isso estão questões que ainda persistem em existir em uma sociedade patriarcal, como a noção distorcida de inferioridade do feminino. Por isso, a violência contra a mulher é um fato que não acontece apenas na sétima arte, mas uma realidade que mais de 21 milhões de brasileiras enfrentaram nos últimos 12 meses.
Segundo dados do Datafolha, quase 40% das mulheres no país já sofreram algum tipo de agressão. Samira Bueno, diretora-executiva do Fórum Brasileiro de Segurança, afirma que o Brasil vive uma epidemia de violência. Portanto, a agressão contra a mulher é uma realidade que reflete na ficção das narrativas de horror.
O que diferencia o joio do trigo é, justamente, a forma como a violência é tratada em cena. Em produções pouco conscientes da problemática, o corpo feminino é exibido, objetificado e colocado em situações fetichizadas, seja pelo foco nas partes íntimas, alusões à práticas sexuais ou gemidos desproporcionais à cena. A linha entre a violência e a provocação de prazer para o homem se torna ainda mais tênue.

Mas homens também não são torturados nos filmes de terror? Sim, da mesma forma que o sexo masculino também sofre violência na sociedade. Mas há diferenças. A exibição da violência contra o homem, salvo em casos muito específicos, não tem apelo sexual. Em resumo, é uma degradação com um intuito único de chocar e causar apavoro no espectador, não um duplo sentido.
A engrenagem misógina do horror
A representação da mulher como vítima violentada é, portanto, um problema sistêmico. E Raphael Montes está longe de ser o precursor dessa tendência que, na verdade, é muito mais um clichê que escritores e diretores insistem em colocar nas obras.
E essa engrenagem misógina, apesar de ter auxílio de produtores e da grande indústria do entretenimento, tem o público que consome e enaltece essa forma de representação como um óleo lubrificante, girando todo o maquinário e perpetuando uma visão que inferioriza as mulheres.
Por isso, a violência contra a mulher se torna banalizada quando manuseada de forma errada em filmes, séries e livros. E essa prática acaba colocando um tema tão sensível como algo válido e até mesmo artístico.
Não é à toa que filmes como ‘Mártires’ (2008), ‘Uma Noite Alucinante: A Morte do Demônio’ (1981) e até mesmo o tenebroso ‘Aterrorizante’ (2018) perpetuam algo que funciona no gênero há décadas, e extrapolam a linha entre violência e fetiche. Por isso, criticar Raphael Montes é esquecer toda a indústria por trás do horror.
Para quebrar esse ciclo, não é preciso tomar medidas extremas e parar de assistir obras clássicas e já concretizadas na história do cinema. Até porque esses filmes não só marcaram a sétima arte, como também trabalharam outros aspectos que podem contribuir para a ideia de arte.
Mas talvez seja interessante consumir outros pontos de vista, que desafiam o clichê de violência e trazem narrativas inovadoras, dando às mulheres papéis com representatividades positivas. Alguns exemplos:
Garota Sombria Caminha pela Noite (2014)
Raw (2016)
A Bruxa (2015)
Casamento Sangrento (2019)
O Babadook (2014)
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